domingo, 16 de junho de 2013

Viagem Solitária - Resenha Crítica



Viagem Solitária - Memórias de um Transexual 
30 anos depois

João W. Nery

João W. Nery é um escritor brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1950, que viveu durante 27 anos em um corpo anatomicamente feminino e com a identidade de Joana, até obter um laudo médico que o identificou como transexual masculino. Considerado o primeiro transexual homem operado do Brasil, em 1977 realizou seu primeiro procedimento cirúrgico rumo à transformação anatômica. Os procedimentos eram ilegais, assim como a mudança de identidade civil, que faria depois clandestinamente, assumindo a identidade atual e perdendo os direitos sob seu currículo escolar anterior, incluindo a faculdade de Psicologia. Aos 62 anos, Nery é considerado um exemplo na luta pelo reconhecimento das diversidades, por revelar sua história sem pudores, e assim, despertar tanto em leigos como em estudiosos, novas possibilidades e ângulos de visão, sob um aspecto mais sensível e mais humano. Sua primeira obra autobiográfica Erro de Pessoa – João ou Joana, de 1984, já tratava das questões e das dificuldades da transexualidade masculina.
Em sua autobiografia, agora repensada, Viagem Solitária – Memórias de um Transexual 30 anos depois, publicada em 2011, ele descreve com detalhes e sem rodeios, cada etapa de sua difícil trajetória, desde a infância, marcada por mil conflitos de identidade, angústias pela dificuldade de adapte em uma das categorias normatizadas pela sociedade, feminina ou masculina, e a não aceitação de si próprio, dentro do corpo que lhe fora dado pela natureza. Cada capítulo, além de uma poesia, contém um grito de liberdade contido no peito, que parece ecoar do centro das 336 páginas, carregadas de sensibilidade, perseverança e coragem para lutar, não para ser aquilo que se desejava ser, mas sim aquilo que já se era, mesmo sem parecer. Se o corpo, nada mais é do que a morada da alma, então realmente não se trata de uma mulher que decidiu virar homem. É a história de uma alma que se descobriu vivendo debaixo do teto errado e que decidiu buscar o lugar certo, onde sua alma sentiu-se, enfim, acomodada.
Na adolescência foram novos desafios, como lidar com as auto comparações com colegas do gênero masculino, os primeiros amores não correspondidos, a menstruação que configurava como “monstruação”, e a estranha convivência familiar, pacífica, mas que tentava camuflar a real situação vivida pela garota, que sofria ao ser chamada pelo nome feminino, e que muitas vezes passava períodos de autocomiseração e muita solidão, em função de sua condição, não reconhecida, não classificada e não aceita.
A juventude trouxe receosos relacionamentos com mulheres, um emprego como taxista, que lhe deu certa independência financeira e a possibilidade de sustentar e manter o primeiro casamento com uma mulher, a busca por ser reconhecido e desejado como homem, inclusive perante sua família, embora ainda vivesse no corpo feminino. Em seguida, formada em Psicologia pela UFRJ, pôde lecionar em universidades e atuar em seu consultório psicológico.
Foi só a partir de 1976 que Joana viria saber da possibilidade real de transformar-se naquilo que já era, sem aos olhos do mundo parecer: um homem. Nunca havia se visto como mulher, tão pouco sentido, embora sua anatomia gritasse isso, a cada olhar no espelho. Passou a buscar um laudo médico que lhe identificasse como transexual, para que pudesse, enfim, ser operado, ainda que clandestinamente. Em 1977, em plena ditadura militar, mas nenhum tipo de incerteza, foi submetida à histerectomia e mastectomia, seguidas por um tratamento hormonal com testosterona. João, enfim, passou a existir de fato, no corpo físico. Uma nova pessoa, com uma nova identidade, com um novo corpo, mas com sentimentos de alívio, por poder andar livremente na rua, sem sentir-se cobrado pela sociedade, por seu erro de pessoa.  Novas dificuldades, como a falta do currículo escolar e profissional, fez com que ele começasse a vida do zero, mas a realização pessoal já era suficiente para torná-lo motivado a esse recomeço. A experiência da paternidade se tornou a realização final do amadurecimento e da autoafirmação masculina. Um filho amado e desejado desde o ventre, tal qual tivesse nascido do espermatozoide que João jamais iria produzir. Teve um relacionamento muito tranquilo e bem estruturado com a criança, hoje um adulto feliz e saudável que sempre o reconheceu como homem e pai. Ensinou-lhe valores como respeito à diversidade, sensibilidade e aceitação.  
As fotos da capa do livro respondem a pergunta que todos se fazem: João jamais fora uma invenção de Joana, mas sim, sua realidade.
A autobiografia de João W. Nery acirra o questionamento à condição heteronormativa, pretendido pela teoria queer. A história de João “ex Joana” prova que apesar da institucionalização do que é normal ou não, sob a ótica e a lógica heterossexual, existe uma lacuna a ser preenchida por uma nova visão, de que outros gêneros e identidades são possíveis naturalmente, fora os que foram inventados e instituídos. Expor sua condição, abrir o jogo e compartilhar com o mundo sua experiência inspiradora de vida e luta, nos abre a cabeça para a possibilidade de sermos sim, aquilo que desejamos e somos naturalmente, sem os ritos e condicionalidades que a sociedade impõe sem dó nem piedade daqueles que se julgam ou são possivelmente diferentes, como sugere a autora Guacira Lopes Louro, no livro Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, (p. 24): “Não se trata, pois, de tomar sua figura como exemplo ou modelo, mas de entendê-la como desestabilizadora de certezas e provocadora de novas percepções” .


Midian Greice de Almeida

Acadêmica de Jornalismo da Unisinos