Viagem Solitária - Memórias de um Transexual
30 anos depois
João W. Nery
João W. Nery é um
escritor brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1950, que viveu durante 27
anos em um corpo anatomicamente feminino e com a identidade de Joana, até obter um
laudo médico que o identificou como transexual masculino. Considerado o
primeiro transexual homem operado do Brasil, em 1977 realizou seu primeiro procedimento
cirúrgico rumo à transformação anatômica. Os procedimentos eram ilegais, assim
como a mudança de identidade civil, que faria depois clandestinamente,
assumindo a identidade atual e perdendo os direitos sob seu currículo escolar
anterior, incluindo a faculdade de Psicologia. Aos 62 anos, Nery é considerado
um exemplo na luta pelo reconhecimento das diversidades, por revelar sua
história sem pudores, e assim, despertar tanto em leigos como em estudiosos, novas
possibilidades e ângulos de visão, sob um aspecto mais sensível e mais humano.
Sua primeira obra autobiográfica Erro de
Pessoa – João ou Joana, de 1984, já tratava das questões e das dificuldades
da transexualidade masculina.
Em sua autobiografia,
agora repensada, Viagem Solitária –
Memórias de um Transexual 30 anos depois, publicada em 2011, ele descreve
com detalhes e sem rodeios, cada etapa de sua difícil trajetória, desde a infância,
marcada por mil conflitos de identidade, angústias pela dificuldade de adapte em
uma das categorias normatizadas pela sociedade, feminina ou masculina, e a não
aceitação de si próprio, dentro do corpo que lhe fora dado pela natureza. Cada
capítulo, além de uma poesia, contém um grito de liberdade contido no peito,
que parece ecoar do centro das 336 páginas, carregadas de sensibilidade,
perseverança e coragem para lutar, não para ser aquilo que se desejava ser, mas
sim aquilo que já se era, mesmo sem parecer. Se o corpo, nada mais é do que a
morada da alma, então realmente não se trata de uma mulher que decidiu virar
homem. É a história de uma alma que se descobriu vivendo debaixo do teto errado
e que decidiu buscar o lugar certo, onde sua alma sentiu-se, enfim, acomodada.
Na adolescência foram novos
desafios, como lidar com as auto comparações com colegas do gênero masculino,
os primeiros amores não correspondidos, a menstruação que configurava como “monstruação”,
e a estranha convivência familiar, pacífica, mas que tentava camuflar a real
situação vivida pela garota, que sofria ao ser chamada pelo nome feminino, e
que muitas vezes passava períodos de autocomiseração e muita solidão, em função
de sua condição, não reconhecida, não classificada e não aceita.
A juventude trouxe receosos
relacionamentos com mulheres, um emprego como taxista, que lhe deu certa
independência financeira e a possibilidade de sustentar e manter o primeiro
casamento com uma mulher, a busca por ser reconhecido e desejado como homem, inclusive
perante sua família, embora ainda vivesse no corpo feminino. Em seguida,
formada em Psicologia pela UFRJ, pôde lecionar em universidades e atuar em seu
consultório psicológico.
Foi só a partir de 1976 que
Joana viria saber da possibilidade real de transformar-se naquilo que já era,
sem aos olhos do mundo parecer: um homem. Nunca havia se visto como mulher, tão
pouco sentido, embora sua anatomia gritasse isso, a cada olhar no espelho.
Passou a buscar um laudo médico que lhe identificasse como transexual, para que
pudesse, enfim, ser operado, ainda que clandestinamente. Em 1977, em plena
ditadura militar, mas nenhum tipo de incerteza, foi submetida à histerectomia e
mastectomia, seguidas por um tratamento hormonal com testosterona. João, enfim,
passou a existir de fato, no corpo físico. Uma nova pessoa, com uma nova
identidade, com um novo corpo, mas com sentimentos de alívio, por poder andar livremente
na rua, sem sentir-se cobrado pela sociedade, por seu erro de pessoa. Novas dificuldades, como a falta do currículo
escolar e profissional, fez com que ele começasse a vida do zero, mas a
realização pessoal já era suficiente para torná-lo motivado a esse recomeço. A experiência
da paternidade se tornou a realização final do amadurecimento e da
autoafirmação masculina. Um filho amado e desejado desde o ventre, tal qual
tivesse nascido do espermatozoide que João jamais iria produzir. Teve um
relacionamento muito tranquilo e bem estruturado com a criança, hoje um adulto
feliz e saudável que sempre o reconheceu como homem e pai. Ensinou-lhe valores
como respeito à diversidade, sensibilidade e aceitação.
As fotos da capa do livro
respondem a pergunta que todos se fazem: João jamais fora uma invenção de
Joana, mas sim, sua realidade.
A autobiografia de João
W. Nery acirra o questionamento à condição heteronormativa, pretendido pela
teoria queer. A história de João “ex Joana”
prova que apesar da institucionalização do que é normal ou não, sob a ótica e a
lógica heterossexual, existe uma lacuna a ser preenchida por uma nova visão, de
que outros gêneros e identidades são possíveis naturalmente, fora os que foram
inventados e instituídos. Expor sua condição, abrir o jogo e compartilhar com o
mundo sua experiência inspiradora de vida e luta, nos abre a cabeça para a
possibilidade de sermos sim, aquilo que desejamos e somos naturalmente, sem os
ritos e condicionalidades que a sociedade impõe sem dó nem piedade daqueles que
se julgam ou são possivelmente diferentes, como sugere a autora Guacira Lopes
Louro, no livro Um corpo estranho:
ensaios sobre sexualidade e teoria queer, (p. 24): “Não se trata, pois, de
tomar sua figura como exemplo ou modelo, mas de entendê-la como desestabilizadora
de certezas e provocadora de novas percepções” .
Midian Greice de Almeida
Acadêmica de Jornalismo
da Unisinos